PROJETO

Apresentação

A obra de Vinicius de Moraes possui, por diversas perspectivas de leitura, uma dimensão profundamente significativa para a cultura brasileira e para a cultura do século XX de forma geral. A poesia, a música, sua produção como cronista ao longo de décadas, sua contribuição no campo das artes cênicas e do cinema, sua forma de traduzir uma ideia de país através de todas essas linguagens e, para além disso, sua capacidade de construir pontes entre artistas e personalidades de matizes culturais e gerações distintas, formam uma vasta e complexa história que se confunde com a própria história da cultura brasileira moderna.

Entre a publicação de seu primeiro livro e sua morte foram quase cinco décadas ininterruptas de trabalho. A atuação de Vinicius de Moraes, para além do seu caráter fundamental como prática artística que abriu novos horizontes para toda nossa produção estética, pode e deve ser observada como uma obra de intervenção na nossa história. Vinicius, nesse sentido, mais que o poeta genial, mais que o compositor que ao lado de seus parceiros de primeira geração de Bossa Nova transformaria para sempre a canção popular, mais que o cronista que escreveu sobre tantos brasis, mais que o criador de Orfeu da Conceição e outras obras da nossa dramaturgia, é um fato cultural decisivo para pensarmos e entendermos boa parte da formação desse país.

O trabalho de salvaguarda, digitalização e ativação digital de seu acervo, localizado fisicamente na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), é dessa forma não só um projeto fundamental de preservação da materialidade da obra, mas também um movimento importante de colocar este arquivo em novos formatos de circulação e ampliar sua recepção nos dias de hoje. Mais que isso, sob uma perspectiva contemporânea do papel do acervo, do arquivo e da memória, sua ativação é uma proposta de refletir sobre o caráter da obra não só como espaço de compreensão do passado mas, especialmente, como um dispositivo para pensar os desafios do mundo atual. A ampliação de sua circulação – seja através de novas leituras, audições, pesquisas, revisões críticas e outros formatos de fruição – é também uma espécie de convite para que seu público acrescente novas camadas criativas, críticas e de entendimento geral a respeito do que este acervo nos apresenta.

Reforçar a presença de Vinicius de Moraes na cena cultural, agora também digital, é assim um ato de disponibilização da obra para novos e outros usos. Das salas de aula de escolas do ensino fundamental aos grandes centros universitários de pesquisa de todo mundo, dos palcos do teatro independente até a Broadway, do leitor mais apaixonado ao pesquisador mais especializado, do leitor mais distraído ao leitor mais rigoroso, do interesse por sua música em perspectiva global, e por toda e qualquer forma de apropriação que sua obra permite, a ampliação do acesso ao arquivo de Vinicius de Moraes é um ato que compreende que um acervo só se mantém como material relevante se se permitir novas formas de utilização e apreciação. É necessário – e fundamental – pensar o arquivo não só como um material que precisa ser resguardado mas, também, como um material que possa incidir sobre o que se produz na contemporaneidade.

Como aqueles com maior compromisso com dados biográficos e históricos podem perceber ou descobrir, Vinicius de Moraes foi um criador intimamente conectado com a construção da materialidade de seu acervo. Por diversas vezes o poeta demonstrou ter uma compressão aguda da importância de ter os registros de sua produção guardados, preservados e catalogados. Com grande contribuição de suas irmãs Lygia e Laetitia Cruz de Moraes Vasconcellos – mais conhecida como Leta –, assim como de outros familiares, amigos e até mesmo de arquivistas especializados, Vinicius de Moraes sempre prezou por reunir os originais de sua produção: poemas e letras de canções, correspondências com amigos e demais interlocutores, roteiros, projetos e registros em geral. Mesmo com as muitas mudanças de casa, cidade e país, que certamente tiveram como uma de suas consequências perdas de conteúdos significativos de sua produção, podemos afirmar que um volume muito expressivo deste acervo foi reunido por própria iniciativa de Vinicius de Moraes e pela sua consciência da relevância que esse material ainda poderia ter.

Possibilitar, hoje, formas mais acessíveis e democráticas de uso deste arquivo é, de certa forma, responder ao permanente interesse que sua obra desperta no Brasil e no mundo mas é também, e talvez principalmente o seja, uma ação que procura afirmar a vitalidade de sua obra para ampliarmos nossa compreensão da história brasileira e para pensarmos nossa experiência contemporânea também sob a luz da produção de um artista que incidiu de forma aguda e contundente sobre seu tempo.

O Brasil do século XXI não será construído se não produzirmos uma cartografia que nos ajude a compreender as rotas que nos trouxeram até aqui. E Vinicius de Moraes certamente é uma das bússolas que precisam ser consultadas tanto para deflagrarmos ainda mais essas rotas já percorridas como para nos orientarmos para criação de outros percursos. O acesso digital ao seu acervo é assim uma aposta em produzir novos encontros e desencontros entre nosso passado, nosso presente e nosso futuro como sociedade e país. De produzir novos leitores e reconfigurar ou relembrar antigas leituras. De produzir e inventar outros tantos Vinicius de Moraes para além dos muitos que já conhecemos e amamos.

A bênção, Vinicius! Saravá!

 

Miguel Jost
Antropólogo e professor do Departamento de Letras da PUC-Rio, é mestre e doutor em Estudos de Literatura e Cultura pela mesma instituição. Em 2014 foi curador da exposição que marcou a comemoração do centenário de nascimento de Vinicius de Moraes. Organizou e assinou o prefácio do livro Samba falado: crônicas musicais de Vinicius de Moraes (2008, Azougue Editorial).

 

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Acervo Digital Vinicius de Moraes: uma prestação de contas para com a poesia

 

Vinicius de Moraes foi fiel ao seu canto “A vida só se dá para quem se deu”. Entregou-se à experiência do viver de forma tão intensa e plena que muitas vezes nos parece incompreensível, chegando a ser superficialmente taxado de irresponsável. Pode não ter sido um modelo de pai, marido e funcionário, mas certamente pode ser considerado um modelo de ser humano, inclusive dentro dos valores tradicionais da mesma sociedade que punha olhares desconfiados sobre seu temperamento inquieto. Sua generosidade sem limites, guiada por uma desordem amiga, estava fundamentada numa honestidade profunda que não admitia soluções superficiais.

Rabiscou seus primeiros versos aos oito anos de idade. Reza a lenda que cantou antes mesmo de falar e, até a sua morte – sempre acompanhado da mulher amada e dos amigos –, escreveu poemas, canções, filmes premiados e peças de teatro. Contribuiu com a imprensa, fez shows antológicos e exerceu a diplomacia por ofício e natureza. Seu gosto notório pela bebida não o impediu de manter uma produção intelectual constante, nos fazendo pensar que poderia ser considerado um fenômeno da natureza, dada a constância de sua escrita. Para além das conjecturas, há o fato de que Vinicius fez muito e o fez com excelência, sempre buscando perfeição e beleza em toda a sua criação.

A responsabilidade de ser herdeiro do legado de Vinicius de Moraes é imensa. Seus cinco filhos se uniram na VM Cultural, produtora que unificou seu direito autoral, com o objetivo de manter ativa a circulação da obra e preservar suas características originais. O Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMBL), da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) – museu, centro de pesquisa e arquivologia –, recebeu em 1987, como doação da família, todo o acervo pessoal de manuscritos e datiloscritos originais, num acordo que inclui a salvaguarda, a organização, a conservação, o respeito aos direitos do autor e o acesso presencial do público aos documentos.

Do compromisso mútuo em preservar e permitir o acesso seguro a este conjunto de documentos raros, consolidou-se a colaboração entre o AMBL e a VM Cultural. O projeto Acervo Digital Vinicius de Moraes é fruto do entendimento da importância desse patrimônio para a memória e identidade cultural brasileiras. Com patrocínio do Itaú, através da Lei Rouanet, a VM Cultural reuniu uma equipe que converteu para formato digital todo o acervo sob a guarda da FCRB, composto por onze mil documentos arquivísticos que chegam a cerca de trinta e cinco mil imagens. A partir da organização e indexação realizada pela instituição, foi criado um site contendo um sistema digital de pesquisa que permite acesso universal a todos os documentos da produção intelectual e à parte da correspondência e dos documentos pessoais. Aliado a outras iniciativas de pesquisa da obra, o projeto criou condições para uma experiência digital única, tornando possível estabelecer um mapa da criação artística de Vinicius, compreender o contexto histórico de sua produção e acompanhar os caminhos percorridos pelo poeta ao longo de sua vida.

A esperança, sentimento que Vinicius definiu como o mais importante, inclusive maior que o amor, por ser gratuito e gerar um benefício imensurável a si próprio e aos que estão ao seu redor, é fonte inspiradora desta iniciativa. Democratizar o acesso ao conhecimento através de fontes confiáveis de informação é uma forma decisiva de remediar a desorientação diante do futuro. Há de se ouvir o passado para distinguir novas vozes que entoem novos cantos.

 

Julia Moraes
Coordenador do Projeto Acervo Digital Vinicius de Moraes
VM Cultural

 

 

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Itaú Cultural

 

Por meio do Itaú Cultural (IC), o Itaú trabalha pela valorização e pela democratização da arte e da cultura brasileiras, e faz isso através das mais variadas ações: do mapeamento e divulgação da obra de criadores de todo o território nacional à salvaguarda do patrimônio de figuras que compõem o patrimônio cultural do próprio país. Neste último conjunto de ações inserem-se tanto projetos idealizados internamente pela equipe da instituição quanto iniciativas de terceiros, que encontram no Itaú um apoio técnico e/ou financeiro – como ocorre em relação a este projeto de digitalização do acervo de Vinicius de Moraes.

Ao longo dos anos, a instituição já atuou na recuperação, na organização e na digitalização de acervos de nomes como os artistas visuais Iberê Camargo, Leonilson e Lygia Clark, o músico Jorge Mautner, o escritor Nelson Rodrigues e o arquiteto Oscar Niemeyer – exemplos que indicam também a atenção dada às diversas áreas de expressão.

Algumas dessas ações dão origem a exposições temporárias na sede do IC, em São Paulo, e em instituições parceiras – afinal, parte fundamental desse trabalho com os acervos é torná-los acessíveis ao público. É o caso das mostras do programa Ocupação Itaú Cultural, que narram a trajetória de artistas de diferentes linguagens, estilos e contextos – mas igualmente fundamentais para a cultura brasileira. Além das exposições, o programa desenvolve uma série de conteúdos on-line, como entrevistas em vídeo e uma parcela dos materiais digitalizados do acervo. No site itaucultural.org.br/ocupacao estão reunidas todas as edições do Ocupação – 51 até o primeiro trimestre de 2021.

Ainda na internet, o site do IC – itaucultural.org.br – traz informações sobre as demais atividades da instituição, como uma extensa programação de eventos gratuitos, presenciais ou on-line, e também conta com conteúdos exclusivos, pensados para o ambiente virtual, como podcasts, oficinas em vídeo para o público infantil e a Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.